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O que é uma pessoa bipolar?

Pessoa bipolar

Em entrevista com o professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Dr. Neury Botega, Dr. Drauzio Varella trouxe perguntas do público sobre o transtorno bipolar. A palavra bipolar se popularizou, é comum ouvi-la no cotidiano, quando uma pessoa se refere a outra como “ele é bipolar, um dia está triste, no outro está feliz”. 

A verdade é que essa doença mental vai muito além da alternância de sentimentos diários, tão comum aos indivíduos, e torna-se um problema para os pacientes diagnosticados. O transtorno é grave e impacta a rotina do sujeito, por isso é tratado na área patológica, ao invés de ser interpretado como algo natural do ser humano. 

A característica central do transtorno bipolar são as fases de depressão, algo mais grave do que a tristeza. E as fases em que o humor fica mais expansivo, seja para a alegria e a impulsividade patológica, seja para a irritabilidade e a agressividade. Às vezes, em ambas as fases, existem delírios, e esses aspectos vão além da experiência diária. 

As perguntas e respostas tratadas no vídeo pelos profissionais são, em resumo, as seguintes: 

 

Drauzio Varella: O que é o espectro bipolar?

 

Neury Botega: Houve uma descrição inicial de casos graves de humor expansivo, alegria patológica e depressão grave. Com o tempo, percebeu-se que algumas pessoas que passavam longos tempos deprimidas tinham períodos de uma ou duas semanas muito eufóricas, muito alegres, que se alguém olhasse com uma lupa mais sensível, iria falar “ele não normal”. Então começou-se a pensar — e isso foi comprovado pela clínica — que o antidepressivo não ajudava essas pessoas a saírem da depressão. Pior: o antidepressivo agravava a instabilidade afetiva. Pensou-se que essas pessoas poderiam ter uma forma atenuada daquele transtorno bipolar grave, descrito no século passado, e chamou-se então de espectro bipolar. Hoje, essas variações mais constantes do humor, porém não graves, são até chamadas de ciclotimia, ciclo porque é cíclico, timos porque é humor. Então a ciclotimia hoje faz parte do transtorno bipolar, do espectro; o transtorno bipolar grave faz parte do espectro, e a gente fala de transtorno bipolar do tipo dois. São pessoas que passam longo tempo deprimidas, mas elas têm períodos de expansão do humor; são difíceis de serem diagnosticadas. A gente tem que caprichar muito na entrevista, às vezes, com a ajuda de um informante, para poder caracterizar. Agora, a vantagem é que ajudamos o maior número de pessoas com estabilizadores de humor, ao invés de antidepressivos. Qual a desvantagem? Todo mundo virou bipolar. Infelizmente, alguns profissionais são muito afoitos em fazer diagnósticos e já começam a dar estabilizadores de humor, o que é perigos. 

 

D.V.: Quais são os primeiros sinais do transtorno bipolar?

 

N.B.: Aparecem no final da adolescência. Ou ele se rompe com uma crise eufórica, em que a pessoa fica impulsiva, falante, vestindo-se diferentemente, não precisa dormir, as ideias não param de aparecer na cabeça e podem até chegar a um delírio de grandeza. Ou aparece como uma depressão bem grave, com vários dias de mudança de comportamento, achando que a vida não tem mais sentido, desconhecendo-se e até com medo de estar doente mental para sempre, porque a depressão veio muito grave. Na maioria das vezes, é com a depressão que aparece. 

 

D.V: O transtorno bipolar é difícil de diagnosticar?

 

N.B: Sim, mesmo eu que procuro ser bastante preciso na questão do diagnóstico, às vezes, sou surpreendido por alguém que durante dois, três, quatros anos em que eu acompanhei, tendo umas duas depressões, de repente vem para uma consulta com a maquiagem diferente, uma roupagem diferente, a mulher vem com um decote, uma minissaia, e eu nunca tinha visto aquilo. A partir desse momento, isso já aconteceu algumas vezes na minha carreira, e eu falo: gente, não era uma depressão decorrente. Essa pessoa tem transtorno bipolar. Em média, um diagnóstico de transtorno bipolar leva de seis a dez anos, no Brasil ou nos Estados Unidos. Os dados são norte-americanos. 

 

D.V: Doutor, a psicose é comum em pessoas com transtorno bipolar?

 

N.B: Sim, tanto que o primeiro nome da doença foi doença maníaco-depressiva, o que faz mais justiça aos aspectos, porque quando a gente fala “bipolar”, pensa em dois polos: depressão ou alegria. Não é muito comum o estado misto, que é tudo ao mesmo tempo. Então, o nome original foi doença maníaco-depressiva, sendo maníaco para euforia e depressivo para depressão. Depois, falamos em PMD, [que é] psicose maníaco-depressivo, porque muitas pessoas na fase eufórica tinham delírios de grandeza, poderiam sair nuas pela rua, distribuindo dinheiro, benzendo a população, tendo premonições, uma “loucura alegre”, em respeito às pessoas que sofreram disso. Mas de fato, chega-se à psicose, tanto nos casos de depressão quanto nos casos de humor eufórico. Infelizmente, não é a maioria dos casos.

“Sou diagnosticada como bipolar tipo 2. Quem tem o transtorno precisa tomar remédio a vida toda?”

N.B: Essa é uma pergunta importante. O que nos dá certeza de alguns diagnósticos é a passagem do tempo, conforme a pessoa evolui. Quando nós fazemos um diagnóstico muito válido, muito consistente de transtorno bipolar, é para toda a vida. Eu ficaria muito preocupado em retirar um estabilizador de humor de uma pessoa que teve a qualidade de vida melhorada com a medicação, porque é normal que as pessoas queiram parar de tomar remédio quando elas estejam em um tempo bom, é que nem dor de dente, não está doendo mais meu dente, vou parar de tomar remédio para dor. Na psiquiatria, não é assim. Se você tem um diagnóstico de transtorno bipolar e passar anos muito bem, o que a gente pode fazer é reduzir a dose de medicação. Por exemplo, o famoso carbonato de lítio: no primeiro ano de tratamento, a gente tenta manter a dose lá em cima; uma pessoa que está há sete anos bem, a gente põe na balança os riscos do uso crônico de lítio. Sendo bem objetivo: se você teve um diagnóstico muito válido, muito consistente, é melhor não interromper a medicação, para o seu próprio bem”.

 

D.V: O idoso pode desenvolver bipolaridade e episódios de mania?

 

N.B: Sim. Quando a doença mental se inicia numa pessoa que tem 20, 30, 40 anos, nós pensamos em um diagnóstico diferencial. Mas quando o transtorno bipolar aparece numa pessoa com mais de 60 anos, ela viveu bem a vida inteira e agora aparece o transtorno, nós ficamos com muito mais receio de que se trate de um problema cerebral vascular, temos que fazer diagnóstico diferencial com neoplasias. Então sim, o transtorno bipolar pode surgir em idade avançada, mas requer muito mais cuidado no que diz respeito ao diagnóstico diferencial. Porque se fizermos um bom diagnóstico diferencial, o tratamento pode ser outro.

 

D.V: Qual a diferença entre transtorno bipolar e borderline?

 

N.B: Outra pergunta importante, porque mexe em um dos calcanhares de Aquiles da psiquiatria, pois é a validade e a consistência dos nossos diagnósticos. Uma das características centrais do transtorno bipolar é a instabilidade do humor, é a impulsividade, é uma hora a depressão (na maior parte do tempo) e na outra a idealização. Uma hora é o demônio e outra hora é o príncipe encantado. Uma hora minha mãe é maravilhosa, no outro lado ela é uma bruxa terrível, que só quer o meu mal. Então o transtorno borderline tem muitas semelhanças com o transtorno bipolar, e muitas vezes nós usamos o mesmo tipo de tratamento. Nós identificamos um grupo de sintomas e vamos com a medicação tentar controlar aquilo. E olha, é possível que, com o tempo, até pensemos em mudar o diagnóstico de transtorno borderline para bipolar. 

 

D.V: Quais os possíveis impactos que o uso de substâncias pode trazer? Pode ser o gatilho?

 

N.B.: Excelente pergunta, porque é o que nós vemos no dia a dia num pronto-socorro psiquiátrico. Chega uma pessoa jovem ou até de meia-idade, muito alegre, muito energética, fazendo todo mundo rir ou querendo brigar com todo mundo, em humor expansivo. A gente pensa: primeira hipótese: isso é droga. Isso é uma droga que tem efeito de aumentar a adrenalina. Mas, se esse tipo de patologia dura mais do que um mês, nós começamos a pensar: não é só droga, a droga foi um gatilho. Você quer outro exemplo comum: o uso de anfetamínicos para emagrecer, para tirar apetite é o gatilho de um transtorno bipolar. Esse é mais um malefício das drogas, pois funciona como gatilho de doenças mentais muito graves. E também a gente tem de tomar cuidado no diagnóstico diferencial. Às vezes, uma crise maníaca, como a gente chama, foi por causa de droga.

 

D.V.: Um alcoólatra pode desenvolver bipolaridade em decorrência da bebida?

 

N.B: Eu até prefiro lhe dizer o que é mais frequente na clínica. Um alcoólatra tem na base do problema que o levou ao alcoolismo uma depressão crônica. Nós temos uma sociedade em que os homens expressam menos sentimentos, pedem menos ajuda, então muitos homens passaram a beber para dar conta de suas ansiedades, crises de pânico e depressão. Quando você me pergunta: o álcool pode conduzir ao transtorno bipolar?, eu tenho a impressão de que o álcool pode deixar o clínico em alerta para a evolução de um quadro bipolar. Eu não diria a você que o álcool causa transtorno bipolar, ele pode entrar como um gatilho ou como uma sombra. Porque em uma pessoa alcoolista, o álcool aparece muito no distúrbio de comportamento. A gente precisa ver o que está no subterrâneo da pessoa”.

 

D.V.: Qual a importância do suporte da família nesses casos?

 

N.B: É fundamental. O principal problema que meus pacientes trazem: se eles assistirem a uma comédia e começarem a dar muita risada, a mãe vai olhar e falar “você tomou remédio?” e o paciente fala “mas doutor, era uma comédia”. Ou se houver um problema amoroso e a pessoa ficar triste, o pai vai chegar e falar: “Você já tomou o remédio?”. Então quem tem transtorno bipolar perde o direito, perante a família, de ter as variações normais de humor. Porque embora o remédio tenha o nome mágico, estabilizador de humor, ele não faz essa mágica, porque senão deixaríamos de ser humanos e seríamos robôs. Então assim, a família fica muito amedrontada de que uma alegria ou tristeza seja o transtorno bipolar. Outras vezes a pessoa pode ter uma reação mais forte, até justificada, e vai ser acusada de ser doente mental. É quando bipolar vira palavrão. E há ainda famílias que, depois do diagnóstico de transtorno bipolar, vão para a internet e o Dr. Google tem um viés trágico. Então a família começa até a ter atitudes para regredir a pessoa, desresponsabilizando-a por muitas coisas. Em resumo, a gente sempre tem que dar muito apoio à família quando damos o diagnóstico bipolar”. 

 

D.V.: O tratamento apresenta maior eficácia se começado na infância?

 

N.B: Claro. Mas aí tem um período. A psiquiatria norte-americana tem um viés, os psiquiatras de lá veem transtorno bipolar em todo mundo, desde a tenra idade. Eles são criticados pelos psiquiatras europeus — e eu pessoalmente fico com os europeus, pois são menos afoitos e intervencionistas em termos de remédio. Mas quanto antes começarmos a tratar alguém contra o transtorno bipolar, melhor. As pesquisas mostram que não é apenas a esquizofrenia que tem evolução com a diminuição do processamento cognitivo. O transtorno bipolar também, principalmente o não tratado. Porque o transtorno bipolar também é uma doença inflamatória crônica do sistema nervoso central. E se não tratado, a pessoa vai decaindo em seu desempenho ao longo dos anos. Então, é melhor tratar cedo, porque quanto mais favoravelmente for a evolução sintomatológica, mais preservado fica o cérebro da pessoa”. 

 

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