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O estigma da mente: transformando o medo em conhecimento

Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.33 no.100 São Paulo  2016

 

A cada dia aprendemos mais sobre a importância do impacto das emoções em nossas vidas, sejam elas positivas ou negativas. A emoção é definida como uma resposta biológica com função adaptativa no processo da evolução de nossa espécie, ela nos permite melhorar a qualidade de nossas interações sociais e nos motiva a realizar nossos sonhos1.

Alegria, raiva, tristeza, nojo e medo são emoções básicas que nos ajudam a perceber e analisar sentimentos; utilizar a compreensão desses sentimentos para organizar nossos pensamentos; compreender as relações entre as emoções e suas possíveis consequências2.

O medo é uma das emoções básicas mais estudadas, compreendida como um estado transitório, intenso e desagradável, também é responsável por produzir a maior quantidade de transtornos mentais. Acionado diante de situações perigosas, o medo desperta nosso sistema de alerta (amigdala cerebral) nos mobilizando para a ação. A grande questão está relacionada com a intensidade emocional que direciona nossas atitudes para o estabelecimento de relações/respostas produtivas ou patológicas.

Certa quantidade de medo pode nos ajudar a realizar tarefas de modo eficaz, porém em situações intensas nossa capacidade cognitiva pode ter o seu potencial reduzido. Nesses momentos, tendemos a focar a análise de nossa percepção no que nos desperta medo, avaliando os acontecimentos de forma negativa e irracional.

Dentro do contexto da saúde mental, o estigma pode ser compreendido como uma atitude de distanciamento resultante da ação do medo. Afinal, o receio, falta de informação, preconceito e discriminação são atitudes normalmente mobilizadas por crenças negativas que nos levam a temer, rejeitar e evitar tudo o que é desconhecido, principalmente pessoas com transtornos mentais.

O estigma é um dos problemas de maior impacto no setor, sendo altamente prejudicial para a sociedade e para a pessoa com a condição patológica. Além disso, é um dos fatores responsáveis por inibir a procura por atendimento, causando perda de produtividade.

A depressão, transtornos de ansiedade (pânico, ansiedade generalizada e fobias), transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno obsessivo compulsivo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade são as doenças mentais de grande impacto social. A maioria dos transtornos mentais tem início antes dos 24 anos, afeta 1 a cada 5 pessoas, incapacitando 1 a cada 20 pessoas. O período da adolescência pode ser considerado uma etapa de extrema importância para a construção de uma vida adulta saudável e produtiva, pois a maioria dos sintomas dos problemas mentais apresenta sinais nesta etapa, além da associação ao aumento da exposição aos fatores de risco, como, por exemplo, o uso de substâncias psicoativas, comportamentos sexuais, estabelecimento de novas relações, mudança de escola, etc.

Com relação à saúde mental dos estudantes, entre 10% e 15% apresentam alguma doença mental, dados apresentados por Fletlich-Bilyk & Goodman e Anselmi mostram o impacto de alguns transtornos mentais na população juvenil, como o uso de drogas (álcool 48%; tabaco 22,5%; maconha 14%; inalantes 5%; cocaína 3%), depressão (1%), TDAH (5%), ansiedade (5,2%), transtorno de conduta (7%) e psicose e autismo (0,2%) são os transtornos de maior prevalência.

Dados como esses ressaltam/valorizam a importância da “saúde para o bem-estar”, para o convívio social e para a construção da subjetividade do indivíduo. Compreendemos o conceito de saúde mental como um estado de bem-estar integral (físico, mental e social), que ultrapassa a mera questão da ausência de doenças, que consiste na capacidade cognitiva e emocional para perceber nossas próprias habilidades, enfrentar os desafios da vida cotidiana, resolver questões problemáticas satisfatoriamente e contribuir de forma produtiva para o contexto em que estamos inseridos.

Transpondo esse conceito para o dia-a-dia, compreendemos que o estabelecimento de relações saudáveis pode atuar como fator promotor em saúde, tanto no sentido de detectar os primeiros sinais dos problemas mentais, quanto no estabelecimento de atitudes saudáveis para a prevenção de recaídas.

Acreditamos que o bem-estar proporcionado pelas relações saudáveis nos permite perceber e interpretar adequadamente a realidade, contribuindo dessa forma para a construção de um mundo interno harmônico.

De forma geral, a subjetividade é construída de maneira dinâmica e constante. À medida que adquirimos novas informações nossa percepção se altera, permitindo que esses estímulos sejam analisados e incorporados de formas diferentes, alterando nossa consciência.

O cérebro processa todos os estímulos, desde os mais simples (ameaças), os complexos (desafios cognitivos – problemas matemáticos) e os de alta complexidade (relações sociais – conflitos morais).

Nossa realidade é constituída a partir de uma estreita relação entre todas as “coisas” que atribuímos ao funcionamento da mente e ao funcionamento cerebral. Dentre as funções relacionadas estão a consciência, a interpretação, os desejos, o temperamento, a imaginação, os sentidos, a linguagem, os pensamentos, a razão, a memória, a intuição e a inteligência.

Se o cérebro analisa todos os estímulos ao nosso redor alterando nossa percepção, a nossa saúde mental pode ser definida a partir de nossa construção subjetiva, seja de ordem sensorial ou orgânica, afinal somos seres biopsicossociais, e os transtornos mentais possuem causas multifatoriais (genéticas, sociais e psicológicas) que se reverberam em várias dimensões de nossas vidas (individual, familiar, profissional e social).

O paradigma da saúde mental tem evoluído nas últimas décadas, ampliando e extrapolando conceitos até então puramente biológicos. Por esse novo prisma, o conceito passa a considerar a saúde como um processo contínuo, onde os sintomas das doenças podem ser compreendidos como consequências da interação entre fatores genéticos, biológicos, psicológicos e culturais. Outra novidade com a mudança de paradigma é a identificação precoce dos estados mentais de risco, o que possibilita o aprofundamento da compreensão sobre a origem dos transtornos mentais, a intervenção precoce e a melhora nos tratamentos.

Nesta linha contínua do processo entre saúde e doença, há um caminho para a construção de um transtorno, a partir de uma perspectiva saudável. Situações de estresse normal com ou sem problemas, tensão mental e sofrimento leve de curta duração podem envolver sentimentos de tristeza, ansiedade e medo, essas características constituem um quadro de saúde mental adequado, ou seja, vivenciar momentos de adversidades faz parte de nosso processo de desenvolvimento.

Quando as situações estressoras se prolongam e se intensificam causam impacto moderado em nossas vidas, os sintomas dos problemas mentais começam a aparecer, resultando em desgastes físicos e emocionais, como, por exemplo, irritabilidade excessiva, alterações constantes de humor, tensão e insônia.

O prolongamento dos sintomas, o aumento da intensidade e suas repetições afetam nossa sensopercepção, nossa capacidade para superar os obstáculos diminui e o quadro dos transtornos mentais se agrava.

Do ponto de vista interventivo, tanto a saúde quanto a doença mental podem ser abordadas a partir de medidas de promoção em saúde. Com relação ao enfoque na saúde mental especificamente, situações estressoras de baixo impacto e duração leve podem ser dissolvidas se alternadas às situações prazerosas, como, por exemplo, uma viagem curta, uma conversa, cinema ou reunião com amigos.

Diante de situações de problemas mentais, alguns sinais de tensão começam a aparecer, exigindo um pouco mais de cuidado e orientação, esses podem ser compreendidos como os principais fatores associados aos riscos para o desenvolvimento de transtornos. A irritabilidade inicial, por exemplo, pode evoluir para sintomas de distúrbios do sono com momentos de insônia e/ou excesso de sono, seguidos por cansaço excessivo e desgaste. Nessa etapa, os fatores de promoção em saúde podem focar em proporcionar aumento de bem-estar subjetivo a partir de práticas de mindfulness, relaxamento, aumento exercícios físicos, etc.

Os comportamentos relacionados aos transtornos mentais exigem cuidados específicos, com intervenção profissional precoce. Entendemos os transtornos mentais como condições caracterizadas por alterações cognitivas e emocionais recorrentes que resultam em deterioração ou perturbação do funcionamento cerebral, causando perdas em diversas áreas da vida (social, afetivo, profissional, etc). Tudo depende da gravidade dos sintomas e de sua recorrência. As condições de cada paciente podem ser muito variáveis. Quanto mais grave, mais cuidados específicos são exigidos (psiquiatria e psicoterapia), seguidos de estratégias de reinserção social.

Quando falamos sobre o curso de um transtorno mental nos remetemos diretamente a doenças funcionais do cérebro, os sinais observados a partir dos sintomas refletem alterações biológicas que afetam principalmente a ação cerebral, como, por exemplo, a sinalização (reação do cérebro aos estímulos ambientais), emoções (sentimentos), sensopercepção (domínio dos cinco sentidos – audição, visão, paladar, olfato e tato), alterações cognitivas (pensamentos) e comportamentais. Essas alterações ocasionam falhas adaptativas que frequentemente são caracterizadas por prejuízos no funcionamento normal.

A probabilidade de uma pessoa desenvolver transtornos mentais normalmente está relacionada com a interação entre a vivência de fatores de risco associados aos fatores de proteção. São considerados fatores de riscos situações que ameaçam a saúde, aumentando as chances para o desenvolvimento de um transtorno ou podem piorar o quadro de uma pessoa já diagnosticada. Esses fatores podem estar associados à herança genética, doenças físicas, traumas, traços de personalidade, uso de drogas, distúrbios do sono e estresse. Os fatores de proteção fortalecem os aspectos saudáveis de uma pessoa, minimizando os riscos para o desenvolvimento de um transtorno ou possíveis recaídas, como senso de humor, capacidade de autocontrole, autoestima positiva, prática de exercícios físicos, convivências familiares e sociais saudáveis, sensação de pertencimento, bons hábitos, oportunidades de lazer, segurança e suporte emocional.

De forma geral, medidas de promoção em saúde visam ampliar as condições para uma vida saudável, considerando a pessoa como um ser integral ao contemplar o campo da doença, da terapia e da saúde como um todo, seja de forma individual ou social, proporcionando condições mais humanas, melhor assistência, possibilidade de cura e diminuição do sofrimento.

Pesquisas recentes revelaram que alguns transtornos mentais têm início durante a infância e a juventude, esses afetam uma a cada três pessoas ao longo da vida, causando impactos emocionais e econômicos significativos quando comparados a outros problemas de saúde. Dados como esses ressaltam a importância de discutirmos assuntos relacionados com a saúde mental, afinal, durante muito tempo a falta de informação reforçou atitudes estigmatizantes de preconceito e discriminação que desestimulam as pessoas a buscar ajuda, principalmente por receio de serem rotuladas. Passamos boa parte de nossas vidas recebendo informações sobre como evitar doenças cardiovasculares, manter os níveis de glicose e colesterol sob controle, mas recebemos poucas informações sobre saúde mental.

Neste sentido, estimular as pessoas a refletirem e incentivar discussões pode ajudar a reduzir a sobrecarga dos sistemas de saúde. A educação em saúde mental surge como uma possibilidade para as pessoas se desenvolverem de forma plena, compreenderem e diferenciarem estados de normalidade de estados de transtornos. Somente com a informação de qualidade poderemos combater o estigma associado à saúde da mente.

Sob esta ótica, o olhar do educador e a escola possuem um papel primordial no sentido de proporcionar o espaço potencial para “trabalhar” informações sobre saúde mental. Mas, infelizmente, sabemos que o conteúdo, apesar de extremamente relevante para a sociedade, ultrapassa o âmbito pedagógico tradicional.

Compreendemos que a escola seja o lugar ideal para a educação em saúde mental, por ser um núcleo de construção de conhecimento e também por ser um lugar onde as crianças e os adolescentes passam a maior parte do seu tempo.

Estimular o desenvolvimento de programas em saúde mental, tanto para professores quanto para alunos, pode alterar o curso dos transtornos mentais na sociedade, evitando seu desenvolvimento, detectando sintomas, criando intervenções precoces e reduzindo a gravidade dos quadros clínicos ao longo do tempo. Essas intervenções podem ser colocadas em prática por profissionais da área da saúde ou por professores treinados.

Acreditamos que, quanto mais pessoas tiverem acesso a informações de qualidade sobre saúde mental, teremos como resultado uma redução do estigma sobre a mente humana e, proporcionalmente, uma sociedade com menos medo do que é diferente, bem como melhor capacidade empática e compreensão com as pessoas que sofrem diretamente o impacto dos transtornos mentais.

Sabemos que a doença demanda atenção cuidadosa, investimentos financeiros e atitude ativa para o alívio do sofrimento, por esses e outros motivos, precisamos pensar em formas criativas para alterar nossos paradigmas com relação à saúde mental (tanto pessoais quanto culturais). E, talvez, uma das estratégias mais simples de promoção em saúde consista em aprender a focar em atitudes positivas que reforcem nossos laços, forças pessoais e virtudes.

As emoções positivas podem ser consideradas como os alicerces fundamentais para a conquista da saúde mental, promovendo condições para a constituição de uma vida plena. A busca pela aquisição de novas competências, o desenvolvimento de nossas potencialidades, recursos psicológicos e desejos podem nos mover em busca de crescimento pessoal.

Características como autoaceitação, autopercepção adequada, desenvolvimento dos próprios potenciais, congruência e autonomia são fundamentais para a aprendizagem social e emocional.

A aprendizagem socioemocional consiste na aquisição e reforço de habilidades que auxiliam a pessoa a conviver melhor consigo e com os outros. Esse conjunto de competências está relacionado com o aprimoramento de atitudes que possibilitam o crescimento saudável. No cotidiano, essas habilidades são testadas e, se vivenciadas positivamente, contribuem diretamente como fator de promoção em saúde (com o aumento de fatores protetores e minimização dos fatores de risco). No contexto escolar, os programas de aprendizagem socioemocional podem promover recursos pessoais ao estimularem um ambiente que valoriza e motiva as pessoas em busca do melhor desempenho social e acadêmico. As habilidades socioemocionais estão relacionadas com o autoconhecimento, consciência social, tomada de decisão responsável e autocontrole.

 

Texto na íntegra: Periódicos Eletrônicos de Psicologia